Do sílex ao digital e da competência à felicidade

03 de Maio de 2023

Poderíamos começar este ensaio livre afirmando, num exercício puramente especulativo, que num futuro próximo, distante ou extremamente distante a tecnologia será um dos factores que salvará a humanidade. Tal como, centrando-nos agora no passado, ao longo da história, a tecnologia fez-nos evoluir enquanto indivíduos, grupos, equipas, famílias ou países, assim como, muitas vezes, nos salvou individual ou colectivamente de outros seres, humanos ou não, quando esses seres eram ameaças para nós e para os nossos. Parece-nos claro que a história da nossa sustentabilidade como espécie tem sido baseada na maior ou menor evolução tecnológica a que temos tido acesso, quer como indivíduos, grupos, equipas, famílias ou países. Paradoxalmente, a evolução tecnológica tem aumentado exponencialmente o risco de desaparecimento da nossa espécie, bem como de fazer desaparecer outras espécies.

A ligação da evolução tecnológica à possibilidade de continuidade ou descontinuidade da vida como ideia mais extrema, por outro lado, promove a necessidade de incluir na discussão outras questões como as relacionadas com a qualidade de vida, o bem-estar, a felicidade e a auto-realização.

Se nos centrarmos no passado, encontraremos certamente exemplos em que a tecnologia trouxe mais qualidade de vida, mais bem-estar, mais felicidade e maior realização pessoal a alguns indivíduos, grupos, equipas, famílias, estados, nações ou países. No entanto, o paradoxo sempre esteve presente no nosso percurso, pelo que muitas vezes a tecnologia que promoveu algo de bom para alguns, terá promovido uma enorme infelicidade, diminuição do bem-estar, da qualidade de vida e a impossibilidade de auto-realização para outros.

Quanto ao futuro - que é sempre susceptível de ser planeado e construído - pode ser igual ao passado ou, se quisermos, diferente dele. A ideia subjacente a esta última afirmação é que, no futuro, nenhum indivíduo, grupo, equipa, família ou país cause sofrimento, através da utilização da tecnologia para fins lucrativos, a qualquer ser, humano ou não, bem como preserve o planeta. Por outras palavras, que a tecnologia seja utilizada para promover estados emocionais positivos que têm na sua base a qualidade de vida, o bem-estar, a felicidade e a auto-realização e que, por outro lado, promova a sustentabilidade do planeta.

Neste ponto, e tendo consciência de que estamos a utilizar o termo tecnologia num sentido lato e abstracto, é tempo de especificar o que pretendemos analisar, ainda que brevemente. Falaremos livremente das redes sociais, que, aliás, se enquadram no conceito alargado de tecnologia e das suas relações com a felicidade.

Ser feliz é o objectivo final de qualquer pessoa e é uma conquista que resulta da responsabilidade própria e é vivida internamente. A felicidade resulta num estado de harmonia com a ausência de conflitos inadequados e de relações pacíficas, e é sobretudo o resultado de relações estruturadas e eficazes.

Os seres humanos são seres sociais e, por isso, precisam de interagir com outros seres humanos, sejam eles amigos, colegas, familiares, parentes mais distantes ou mesmo desconhecidos. Do ponto de vista da utilização das redes sociais, numa primeira instância, pode ser que o importante seja interagir, seja de que forma for, com ou sem qualidade na relação, combatendo o possível reverso da medalha: o sofrimento mental devido à solidão e/ou à depressão.

Alguns estudos sobre este tema, que relacionam a utilização das redes sociais com a felicidade, concluíram que muitas pessoas começaram a "navegar" porque já se sentiam ansiosas, solitárias ou deprimidas e estavam ansiosas por começar. Outros estudos mostraram que muitos utilizadores utilizavam a comunicação nas redes sociais como uma forma alternativa de esquecer os seus desafios pessoais. Nestes casos, diríamos que passar muito tempo online seria considerado o sintoma e não a causa de algum tipo de sofrimento mental. Esta procura de felicidade e prazer coincide muitas vezes com sentimentos momentâneos e efémeros, dependentes de factores externos e, por isso mesmo, de curta duração, não contribuindo para ultrapassar os sintomas de solidão e/ou depressão.

Para além destas questões relacionadas com a solidão e a depressão, existem actualmente grandes debates sobre outros efeitos nocivos da utilização das redes sociais no bem-estar das pessoas. É bastante comum ouvirmos notícias de cibercrimes em que pessoas são defraudadas através das redes sociais, além de diversas formas de bullying e outros crimes como injúria ou difamação. Estes males ocorrem constantemente, precisamente devido à facilidade com que os infractores se escondem atrás de perfis muitas vezes falsos.

Por outro lado, as redes sociais permitiram também a crescente promoção de uma cultura de perfeição, em que as pessoas partilham com todos os seus seguidores os locais idílicos que percorreram, os seus corpos esculturais, as actividades radicais que praticam, as iguarias que cozinham dignas de um chef profissional, entre outros feitos dignos de ostentação. Ideias amplamente divulgadas, por uma necessidade de afirmação e aceitação, apesar de muitas vezes serem criadas artificialmente pelos próprios autores dos conteúdos.

Existem também perturbações já identificadas ligadas às redes sociais, como o FOMO - Fear of Missing Out, que leva a comportamentos obsessivos de ligação permanente e consequente perda de ligação ao mundo real.

Todos os crimes referidos, bem como a ideia de perfeição manipulada e as patologias identificadas, têm impactos incrivelmente significativos nas pessoas, provocando sentimentos de inferioridade, tristeza e depressão, levando por vezes, em casos extremos, ao suicídio. No entanto, acreditamos que estas acções maliciosas e os seus resultados não têm origem nas redes sociais, mas sim no comportamento desadequado de quem as promove, bem como, por outro lado, talvez na maioria dos casos, na falta de competências das vítimas para gerir as consequências causadas por essas acções.

Por outro lado, numa perspectiva mais positiva podemos dizer que a utilização das redes sociais para estabelecer ligações e comunicação de forma equilibrada pode ser benéfica, promovendo amizades imediatas e embora positivas, não tão enraizadas como deveriam, mas sim relacionadas com a procura da felicidade e do prazer imediato e indolor (felicidade hedónica).

A felicidade hedónica está relacionada com a procura de prazer imediato e a redução do sofrimento através da obtenção de gratificações externas e instantâneas. São exemplos destas gratificações os bens materiais, a comida, a bebida, o estatuto, o sexo, o poder, o dinheiro, a aceitação e a partilha das nossas ideias expressas em "posts", pelos nossos "amigos", entre outros tipos de reacções à nossa intervenção nas redes. Este tipo de felicidade é temporalmente limitado. Ao longo do tempo, se não tivermos um novo motivo externo (leia-se, por exemplo, um novo "like") para nos fazer felizes, passaremos ao estado de infelicidade temporária, uma vez que queremos mais desse prazer. Este fenómeno é designado por adaptação hedónica. Por outro lado, quando conseguimos esse "gosto", passado algum tempo, tudo volta a ser como dantes, a mesma rotina e as mesmas insatisfações. E a questão que se coloca é: o problema é a falta de "gostos" ou as expectativas irrealistas que por vezes criamos sobre o que realmente precisamos para nos sentirmos bem e felizes?

Numa outra perspectiva, a felicidade eudaimónica resulta da procura de uma vida com mais significado e está relacionada com uma felicidade mais profunda. Alguns exemplos deste tipo de felicidade são as realizações pessoais, a contribuição social através de actos de bondade, o dever de cuidar especialmente de seres frágeis, humanos ou não, e a construção de relações interpessoais eficazes na família, e aqui a utilização das redes sociais pode ter um impacto positivo, se utilizadas em prol da criação de estados emocionais positivos naqueles com quem interagimos, sem que estes tenham de retribuir comportamentos que nos satisfaçam em troca.

Identificar a importância da chamada felicidade eudaimónica implica tomar consciência de que as redes sociais têm vindo a permitir o florescimento do que de melhor existe no ser humano, possibilitando o encontro de famílias de lugares distantes do planeta, potenciando actos de amor. Hoje em dia é possível, por exemplo, um avô que vive na Austrália acompanhar e participar no crescimento do seu neto que vive em Portugal. Esta realidade veio alterar o conceito de saudade, reduzindo a tristeza associada às longas ausências e despedidas.

Na procura de uma vida com mais significado, a tecnologia permitiu também a criação de grupos de indivíduos com interesses semelhantes, nos quais se trocam conhecimentos e se partilham actividades conjuntas, resultando na criação de laços que podem ser duradouros, aumentando assim o bem-estar. Todos nós já ouvimos falar do grupo de corrida das 6h da manhã, ou do grupo de alimentação saudável, entre muitos outros, que permitem a partilha de bons hábitos e a ligação necessária para os manter.

É também importante referir as ondas de apoio e solidariedade que são potenciadas pelas redes sociais, através das quais é muitas vezes possível angariar um número suficiente de pessoas para limpar praias, ou reunir uma quantidade significativa de dinheiro para comprar medicamentos ou outros bens para ajudar uma pessoa doente. É também através destas redes que as pessoas tomam conhecimento de situações que antes eram desconhecidas, como uma doença rara.

Quando se trata deste tipo de felicidade, as pessoas compreendem o que realmente lhes traz uma satisfação mais duradoura, descobrindo muitas vezes o seu objectivo na vida. A felicidade não é apenas o sorriso constante, a gargalhada permanente ou o aforro de "gostos". Trata-se de descobrir a sua essência, o seu "eu autêntico", o que faz sentido e é a raiz da vida.

A felicidade mais duradoura é precisamente aquela que resulta das actividades em que mais nos empenhamos e nas quais colocamos a energia da nossa vontade mais profunda. É por isso que as experiências de prazer imediato duram como flashes e acabam rapidamente, e não permanecem tão vivas na nossa memória como as experiências mais gratificantes ligadas às grandes realizações da vida.

Para alcançar este tipo de felicidade eudaimónica, é necessário desenvolver competências éticas, psicológicas e emocionais, como a auto-consciência ou o auto-conhecimento. A felicidade, no seu sentido mais profundo, é uma questão de escolha. E essa escolha deve basear-se nos significados e crenças pessoais que cada pessoa desenvolveu ao longo da vida sobre o que significa ser feliz. As competências acima mencionadas irão melhorar e facilitar a identificação destes caminhos de objectivos amplamente gratificantes. Seligman defende que uma vida com significado e com um bem-estar emocional perfeito pode prescindir de prazeres hedónicos e de actividades envolventes e pode fazê-lo porque essa vida está repleta de objectivos que ajudam a aumentar os níveis de felicidade

A comunicação nas redes sociais e a sua associação com o bem-estar emocional podem ser positivas e negativas. A associação positiva incentiva o aumento das amizades virtuais, enquanto as associações negativas podem levar à diminuição dos níveis de auto-estima devido à comparação social, o que pode indicar um défice das competências acima referidas.

Independentemente de tudo o que foi dito, pode argumentar-se e está provado que os cérebros humanos herdam uma forte inclinação para as relações e estão programados para desfrutar da felicidade. Para além desta natureza mais física, existem neurotransmissores que são automaticamente libertados no corpo humano, como por exemplo a oxitocina, a dopamina e a serotonina.

Qualquer actividade que influencie a libertação de neurotransmissores pode melhorar o humor e aumentar os níveis de felicidade e prazer nos seres humanos. As relações interpessoais nas redes sociais podem promover a felicidade e o prazer de um utilizador através da libertação desses ou de outros neurotransmissores. Todas as actividades, desde a curiosidade passiva até às notificações gratificantes sob a forma de gostos, comentários e partilhas, libertam neurotransmissores que geralmente têm um impacto positivo no estado emocional do utilizador. No entanto, o facto de nos lembrarmos do impacto positivo que a interacção nas redes sociais pode ter sobre nós, não significa que queiramos esquecer que, muitas vezes, a navegação no "oceano das redes" pode causar angústia e consequente produção excessiva de cortisol, o que pode levar os utilizadores, a curto, médio ou longo prazo, à teia da depressão e da ansiedade descontrolada. Em todo o caso, e como já defendemos neste artigo, acreditamos que a falta de controlo que a angústia faz prever significa uma falta de competências que promovam o autocontrolo dos comportamentos, de forma a promover um equilíbrio entre a vida real e a vida digital.

Em conclusão, podemos constatar que as redes sociais e a tecnologia estão ao serviço do ser humano e, como tal, promovem e induzem os comportamentos e sentimentos que as pessoas querem desenvolver. A felicidade é conseguida através de um trabalho constante e diário que cada indivíduo faz, dependendo exclusivamente de si próprio, e, como tal, tem ao seu dispor ferramentas poderosas que podem facilitar a sua construção.

Todas as acções socialmente inadequadas e os sentimentos negativos que hoje associamos às redes sociais já existiam antes das redes sociais. A tecnologia apenas os potencia, facilitando os processos e a velocidade de divulgação. No entanto, temos sempre o reverso da medalha, esta facilitação de processos e rapidez, também se aplicam a acções e sentimentos positivos.

O que podemos falar é da necessidade urgente de desenvolver competências para que cada pessoa saiba fazer as escolhas correctas e consiga gerir-se emocionalmente, de modo a não permitir a influência negativa das redes sociais.

Hoje em dia é muito mais fácil ver uma criança interagir desde cedo com as tecnologias do que ter contacto com ferramentas de desenvolvimento pessoal. Desde cedo, é muito importante desenvolver as competências fundamentais para que cada indivíduo encontre o seu caminho para a felicidade, caso contrário poderá desenvolver os comportamentos que levam a que as redes sociais sejam vistas como um dos males das sociedades actuais. Não podemos colocar a responsabilidade nos lugares errados, só porque não nos queremos dar ao trabalho de nos desenvolvermos para que o lado tecnológico da comunicação nas redes sociais não se sobreponha ao lado humano da interacção. Se um utilizador ignorar o lado humano da interacção e confiar mais no lado tecnológico, corre o risco de perder a realidade da vida, causando um impacto negativo no seu bem-estar emocional. Esta geração tecnológica deve ter em mente que a vida virtual é um complemento da vida real e não um produto de substituição dessa vida.

O efeito positivo ou negativo da comunicação através da utilização das redes sociais no bem-estar emocional de um indivíduo depende exclusivamente de como e para que se utilizam as redes sociais.

O futuro será o resultado do que fizermos no presente e a decisão cabe a cada um de nós. No passado, a tecnologia do sílex era utilizada para fins como a diversão, o desenvolvimento de competências (treino), para matar outros seres ou humanos, e a base destas acções assentava normalmente no planeamento, na acção, na verificação e no aperfeiçoamento. E a tecnologia digital, tem de ser diferente?

Atrevemo-nos a dizer que sim. Será diferente, e o ser humano desenvolverá competências comportamentais que lhe permitirão utilizar a tecnologia em prol de um objectivo diferenciador e há muito esperado: fundar uma nova humanidade, a humanidade feliz.

 

António Paulo Teixeira

HUMAN RESOURCES OFFICER